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Deixando o Castelo do Vampiro
/// Mark Fisher

Ilustração por Andy King
Ilustração por Andy King
Publicado originalmente em The North Star em 22 de novembro de 2013

Tradução: Fabrício Silveira 
N este verão, considerei seriamente a possibilidade de me retirar de qualquer envolvimento com política. Exausto pelo excesso de trabalho, incapaz de qualquer atividade produtiva, me encontrei vagando pelas redes sociais, sentindo pesar minha depressão, com minha exaustão aumentando.

As contas do Twitter de “esquerda” geralmente configuram uma zona miserável e desanimadora. No início deste ano, ocorreram algumas tempestades em certos perfis no Twitter, nas quais figuras específicas identificadas à esquerda foram “autuadas” e condenadas. O que essas figuras haviam dito era, às vezes, censurável; mas, no entanto, a maneira pela qual foram pessoalmente difamadas e perseguidas me deixou uma sensação residual horrível: um cheiro de má consciência e um moralismo tipo “caça às bruxas”. A razão pela qual não me manifestei sobre nenhum desses incidentes, tenho vergonha de dizer, foi o medo que tive. Os valentões estavam na outra parte do playground. E eu não quis atrair a atenção deles para mim.

A franca selvageria dessas trocas de mensagens foi acompanhada por algo mais difundido e, por esse motivo, talvez mais debilitante: uma atmosfera de ressentimento sarcástico. O alvo mais frequente desse ressentimento foi (e é) Owen Jones. Os ataques a Jones — o maior responsável por elevar a consciência de classe no Reino Unido nos últimos anos — foram uma das razões pelas quais fiquei tão abatido. Se é isso o que acontece com um sujeito de esquerda que está realmente conseguindo levar certas lutas políticas para o centro da vida britânica, por que alguém iria querer segui-lo até o mainstream? Permanecer numa posição de marginalidade impotente é a única maneira de evitar que esse abuso paulatino aconteça?

Uma das coisas que me tirou desse estupor depressivo foi ir à Assembléia Popular em Ipswich, perto de onde moro. A Assembléia Popular foi saudada com os risos e as zombarias habituais. Disseram-me que havia um golpe inútil, no qual esquerdistas da mídia, incluindo Jones, estavam se engrandecendo em mais uma exibição da cultura das celebridades emergentes. O que realmente aconteceu na Assembléia em Ipswich foi muito diferente dessa caricatura [que me foi dada]. A primeira metade da noite — culminando num discurso empolgante de Owen Jones — foi liderada pelos palestrantes da mesa. Mas na segunda metade da reunião ativistas da classe trabalhadora de várias partes de Suffolk conversaram entre si, apoiando-se, compartilhando experiências e estratégias. Longe de ser outro exemplo de esquerdismo hierárquico, a Assembléia Popular foi um exemplo de como a verticalidade pode ser combinada com a horizontalidade: poder midiático e carisma poderiam atrair pessoas que não haviam estado anteriormente numa reunião política naquela sala, onde poderiam conversar e criar estratégias com ativistas experientes. A atmosfera era anti-racista e anti-sexista, mas refrescantemente livre do sentimento paralisante de culpa e suspeita que paira sobre os Twitters de esquerda como uma névoa acre e sufocante.

E lá estava Russell Brand. Sou admirador de Brand há muito tempo — um dos poucos comediantes renomados da cena atual que vem da classe trabalhadora. Nos últimos anos, houve um emburguesamento gradual, porém sem remorsos, da comédia televisiva, com o absurdo e ultra-elegante Michael McIntyre e uma garoa sombria de recém-graduados insípidos dominando o palco.

Um dia antes da agora famosa entrevista de Brand com Jeremy Paxman ser transmitida na Newsnight, eu tinha visto o stand-up de Brand no Messiah Complex, em Ipswich. A apresentação foi desafiadoramente pró-imigrante, pró-comunista, anti-homofóbico, saturado com a inteligência da classe trabalhadora e sem medo de mostrá-la, e foi queer da maneira que a cultura popular costumava ser (ou seja, nada a ver com a faceta identitária azeda e piedosa imposta a nós por moralistas da “esquerda” pós-estruturalista). Malcolm X, Che, a política como um desmantelamento psicodélico da realidade existente: esse era o comunismo como algo cool, sexy e proletário, ao invés de um sermão dado por alguém com os dedos em riste apontados para nós.

Na noite seguinte, ficou claro que a aparição de Brand havia produzido um momento de divisão. Para alguns de nós, a força da argumentação de Brand com Paxman foi intensamente emocionante, milagrosa; eu não conseguia me lembrar da última vez em que uma pessoa da classe trabalhadora teve espaço para destruir tão consumadamente uma classe “superior” usando inteligência e razão. Não era Johnny Rotten xingando Bill Grundy — um ato de antagonismo que confirmou mais do que desafiou os estereótipos de classe. Brand havia enganado Paxman — e o uso do humor foi o que separou Brand da amargura de tanto “esquerdismo”. Brand fez as pessoas se sentirem bem consigo mesmas; enquanto a esquerda moralizante se especializa em fazer as pessoas se sentirem mal e não é feliz até que suas cabeças estejam inclinadas em culpa e auto-aversão.

A esquerda moralizante rapidamente garantiu que a história não fosse vista como uma violação extraordinária, por parte de Brand, das convenções sem graça do “debate midiático” convencional, nem sobre a alegação de que a revolução iria acontecer. Esta última alegação só pôde ser ouvida pela ‘esquerda’ narcisista pequeno-burguesa como Brand dizendo que queria liderar a revolução — algo que eles responderam com ressentimento típico: ‘Eu não preciso de uma celebridade de salto alto para me liderar’. Para os moralistas, a história dominante era sobre a conduta pessoal de Brand — especificamente seu sexismo. Na febril atmosfera de McCarthismo fermentada pela esquerda moralizante, pistas que poderiam ser interpretadas como indício de sexismo significam que Brand é um sexista, o que também significa que ele é misógino. E então está feito. É curto e grosso. Ele está condenado.

É certo que Brand, como qualquer um de nós, tenha que responder por seu comportamento e pela linguagem que usa. Mas esse questionamento deveria ocorrer numa atmosfera de camaradagem e solidariedade, e provavelmente não em público, em primeiro lugar — ainda que, quando Brand foi questionado sobre sexismo por Mehdi Hasan, ele demonstrasse exatamente o tipo de humildade bem-humorada que faltava inteiramente nos rostos daqueles que o julgaram. “Eu não acho que sou sexista, mas lembro da minha avó, a pessoa mais adorável que eu já conheci: ela era racista, mas não acho que ela sabia. Não sei se tenho um cacoete cultural muito grande, sei que gosto muito da linguística do proletariado, dizer coisas como ‘querida’ e ‘pintinho’; portanto, se as mulheres pensam que sou sexista, estão em melhor posição do que eu para julgar, então vou trabalhar nisso.”

A intervenção de Brand não foi a insinuação de uma liderança; foi uma inspiração, um chamado às armas. E eu fui um dos inspirados. Onde, alguns meses antes, eu teria ficado em silêncio quando os moralistas da esquerda elegante sujeitaram Brand a seus tribunais de canguru e seus assassinatos de reputação — com ‘evidências’ geralmente recolhidas junto à imprensa de direita, sempre disponível para ajudar –, desta vez eu estava preparado para enfrentá-los. A resposta a Brand rapidamente se tornou tão significativa quanto a própria argumentação com Paxman. Como Laura Oldfield Ford apontou, este foi um momento esclarecedor. E uma das coisas que me foi esclarecida foi a maneira pela qual, nos últimos anos, grande parte da autodenominada “esquerda” suprimiu a questão da classe.

A consciência de classe é frágil e passageira. A pequena burguesia que domina a academia e a indústria cultural faz todos os tipos de deflexões e pressões sutis que impedem que o tópico apareça, e então, se ele surgir, fazem pensar que é uma terrível impertinência, uma falta de etiqueta abordá-lo. Eu tenho falado sobre a esquerda, sobre eventos anticapitalistas há anos, mas raramente falo — ou me pedem para falar — sobre classe em público.

Mas, uma vez que a classe reapareceu, é impossível não enxergá-la em toda parte na resposta ao caso Brand. Brand foi rapidamente julgado e/ou interrogado por pelo menos três pessoas, à esquerda, provenientes de escolas particulares. Outros nos disseram que Brand não poderia realmente ser da classe trabalhadora porque ele era um milionário. É alarmante quantos “esquerdistas” pareciam concordar fundamentalmente com a tendência por trás da pergunta de Paxman: “O que dá a essa classe trabalhadora a autoridade para falar?”. É também alarmante e, na realidade, angustiante que eles pareçam pensar que as pessoas da classe trabalhadora devem permanecer na pobreza, na obscuridade e na impotência para que não percam sua ‘autenticidade’.

Alguém me passou um post escrito sobre Brand no Facebook. Não conheço o indivíduo que o escreveu e não gostaria de nomeá-lo. O importante é que o post foi sintomático de um conjunto de atitudes esnobes e condescendentes que aparentemente é bom exibir enquanto alguém ainda se classifica como sendo de “esquerda”. Todo o tom era terrivelmente arrogante, como se fosse um professor de escola riscando à mão o trabalho de uma criança ou um psiquiatra avaliando um paciente. Brand, ao que parece, é [descrito como] “claramente e extremamente instável… [devido a] um relacionamento ruim ou uma contrariedade [qualquer] na carreira, [apto para] desmoronar no vício em drogas ou em coisa pior.” Embora a pessoa afirme que “realmente gosta muito de Brand”, talvez nunca ocorrerá a ela que uma das razões pelas quais Brand pode ser “instável” é esse tipo de avaliação condescendente e falsamente transcendental [feita a respeito de gente como ele] pela burguesia de “esquerda”. Há também um aspecto chocante, mas revelador, em que o indivíduo se refere casualmente à “educação desigual” de Brand [e] ao seu vocabulário que causa estremecimento, característico de um autodidata — sobre o qual esse indivíduo generosamente diz: “Não tenho nenhum problema com isso”. Ora! Como esse sujeito é bom! Não se trata de um burocrata colonial escrevendo sobre suas tentativas de ensinar a alguns “nativos” a língua inglesa no século XIX ou de um professor de uma escola vitoriana em alguma instituição privada que descreve um de seus bolsistas. É um “esquerdista” escrevendo algumas semanas atrás.

Para onde ir daqui para a frente? Antes de tudo, é necessário identificar as características dos discursos e os desejos que nos levaram a esse passo sombrio e desmoralizante, onde a classe desapareceu, mas o moralismo está em toda parte. Onde a solidariedade é impossível, mas a culpa e o medo são onipresentes — e não porque somos aterrorizados pela direita, mas porque permitimos que os modos burgueses de subjetividade contaminem nosso movimento.

Eu acho que temos aqui duas configurações libidinal-discursivas que nos trouxeram a essa situação. Ambas se definem à esquerda, mas, como o episódio de Brand deixou claro, ambas são, de várias maneiras, sinais de que a esquerda, definida como um agente da luta de classes, praticamente desapareceu.


Dentro do Castelo do Vampiro


A primeira proposição é o que eu chamo de Castelo do Vampiro. O Castelo do Vampiro é especializado em propagar a culpa. É motivado pelo desejo de excomungar e condenar, típico de um padre, o desejo de um acadêmico-pedante de ser o primeiro a ser visto a detectar um erro e o desejo de um hipster de fazer parte da multidão. O perigo de atacar o Castelo do Vampiro é que ele fará parecer — e fará tudo o que puder para reforçar esse pensamento — que aquele que o ataca também está atacando as lutas contra o racismo, o sexismo e o heterossexismo. Mas, longe de ser a única expressão legítima de tais lutas, o Castelo do Vampiro é melhor entendido como uma perversão liberal-burguesa e uma apropriação da energia desses movimentos. O Castelo do Vampiro nasceu no momento em que as lutas, não definidas por categorias identitárias, tornaram-se a busca de “identidades” reconhecidas por um grande Outro burguês.

O privilégio que certamente desfruto como homem branco consiste, em parte, em não estar ciente de minha etnia e gênero, e é uma experiência sóbria e reveladora, ocasionalmente, tomar consciência desses pontos cegos. Porém, mais do que procurar um mundo em que todos consigam se libertar da classificação identitária, o Castelo do Vampiro procura encurralar as pessoas em campos identitários, onde elas são definidas para sempre nos termos estabelecidos pelo poder dominante, prejudicados pela autoconsciência [que possam ter] e isolados por uma lógica de solipsismo que insiste em que não podemos nos entender, a menos que pertençamos ao mesmo grupo de identidade.

Já reparei num fascinante mecanismo de inversão mágica entre projeção-desaprovação, pelo qual a simples menção de classe é tratada automaticamente como se isso significasse que alguém está tentando rebaixar a importância de raça e gênero. De fato, o caso é o oposto, pois o Castelo do Vampiro utiliza um entendimento liberal de raça e gênero para ofuscar as questões de classe. Em todas as tempestades absurdas e traumáticas do Twitter sobre privilégios, no início deste ano, foi notável que a discussão sobre privilégios de classe estava totalmente ausente. A tarefa, como sempre, continua sendo a articulação de classe, gênero e raça — mas o movimento fundador do Castelo do Vampiro é a desarticulação da classe em relação às demais categorias.

O Castelo do Vampiro foi criado para resolver o seguinte problema: como você pode deter imensa riqueza e poder enquanto também aparece como vítima, marginal e oposicionista? A solução já estava lá — na igreja cristã. Assim, o Castelo do Vampiro recorreu a todas as estratégias infernais, patologias sombrias e instrumentos de tortura psicológica que o cristianismo inventou, e que Nietzsche descreveu na Genealogia da Moral. A existência desse sacerdócio da má consciência, esse ninho de devotos piedosos, é exatamente o que Nietzsche previu quando disse que algo pior do que o cristianismo já estava a caminho. E aqui está…

O Castelo do Vampiro se alimenta da energia, ansiedades e vulnerabilidades dos jovens estudantes, mas, acima de tudo, vive convertendo o sofrimento de grupos específicos — quanto mais “marginais”, melhores — em capital acadêmico. As figuras mais louvadas no Castelo do Vampiro são aquelas que descobriram um novo mercado de sofrimento — aquelas que podem encontrar um grupo mais oprimido e subjugado do que qualquer outro explorado anteriormente serão promovidas através dessas fileiras muito rapidamente.

A primeira lei do Castelo do Vampiro é: individualizar e privatizar tudo.

Embora em teoria afirme ser a favor da crítica estrutural, na prática nunca se concentra em nada, exceto no comportamento individual. Alguns desses tipos de classe trabalhadora não são muito bons e, às vezes, podem ser muito rudes. Lembre-se: condenar indivíduos é sempre mais importante do que prestar atenção às estruturas impessoais. A atual classe dominante propaga ideologias do individualismo, enquanto tende a agir como uma classe. (Muito daquilo que chamamos de “conspirações” são [movimentos] da classe dominante mostrando solidariedade de classe.) O Castelo do Vampiro, como os burros de carga da classe dominante, faz o oposto: presta atenção à “solidariedade” e à “coletividade”, sempre atuando, no entanto, como se as categorias individualistas impostas pelo poder realmente se mantivessem. Por serem pequeno-burgueses até o âmago, os membros do Castelo do Vampiro são intensamente competitivos, mas isso é reprimido da maneira agressiva-passiva típica da burguesia. O que os mantém unidos não é a solidariedade, mas o medo mútuo — o medo de que eles sejam os próximos a serem expulsos, expostos e condenados.

A segunda lei do Castelo do Vampiro é: fazer o pensamento e a ação parecerem muito, muito difíceis.

Não deve haver leveza e certamente nenhum humor. O humor não é sério, por definição. Certo? O pensamento é um trabalho árduo, para pessoas com vozes elegantes e sobrancelhas franzidas. Onde houver confiança, introduza o ceticismo. Diga: não seja apressado, temos que pensar mais profundamente sobre isso. Lembre-se: ter convicções é opressivo e pode levar aos gulags.

A terceira lei do Castelo do Vampiro é: propague o máximo de culpa possível.

Quanto mais culpa, melhor. As pessoas devem se sentir mal: é um sinal de que compreendem a gravidade da situação. Não há problema em ter privilégios de classe se você se sentir culpado por privilégios e fazer com que outras pessoas em uma posição de classe subordinada também se sintam culpadas. Você faz boas obras também para os pobres, certo?

A quarta lei do Castelo do Vampiro é: essencialize.

Embora a fluidez da identidade, a pluralidade e a multiplicidade sejam sempre reivindicadas pelos membros do Castelo do Vampiro — em parte para encobrir seus próprios antecedentes invariavelmente ricos, privilegiados ou assimilados pela burguesia –, o inimigo deve sempre ser essencializado. Como os desejos que animam o Castelo do Vampiro são, em grande parte, os desejos dos padres de excomungar e condenar, deve haver uma forte distinção entre o Bem e o Mal, sendo este último essencializado. Observe as táticas. X fez uma observação/comportou-se de uma maneira particular — essas observações/esse comportamento podem ser interpretados como transfóbicos/sexistas etc. Até agora, tudo bem. Mas o próximo passo que é o seguinte: X passa a ser definido como um transfóbico/sexista, etc. Toda a sua identidade é definida por uma observação mal julgada ou um deslize comportamental. Uma vez que o Castelo da Vampiro tenha feito sua caça às bruxas, a vítima (geralmente de classe trabalhadora, e não educada na etiqueta agressiva-passiva da burguesia) pode ser levada a perder a paciência, assegurando ainda mais sua posição de pária, deixando-se ser consumido num frenesi devorador.

A quinta lei do Castelo do Vampiro: pense como um liberal (porque você é um).

O trabalho do Castelo do Vampiro de provocar indignação reativa constantemente consiste em apontar infinitamente o óbvio gritante: o capital se comporta como capital (não é muito legal!). Os aparatos repressivos do estado são repressivos. Nós devemos protestar!


Neo-anarquia no Reino Unido


A segunda formação libidinal é o neo-anarquismo. Como neo-anarquistas, eu definitivamente não quero me referir aos anarquistas ou sindicalistas envolvidos na organização real do local de trabalho, como a Federação de Solidariedade. Quero referir, sim, àqueles que se identificam como anarquistas mas cujo envolvimento na política se estende muito pouco além dos protestos e ocupações estudantis e dos comentários no Twitter. Como os habitantes do Castelo do Vampiro, os neo-anarquistas geralmente vêm de uma origem pequeno-burguesa, se não de algum lugar de ainda maior privilégio de classe.

Eles também são esmagadoramente jovens: na casa dos vinte ou, no máximo, na casa dos trinta, e o que informa sua posição neo-anarquista é um estreito horizonte histórico. Os neo-anarquistas não experimentaram nada além do realismo capitalista. Quando os neo-anarquistas chegaram à consciência política — e muitos deles chegaram à consciência política há muito pouco tempo, dado o nível de arrogância autista que às vezes exibem –, o Partido Trabalhista havia se tornado uma casca blairista, implementando o neoliberalismo com uma pequena dose de justiça social ao lado. Mas o problema com o neo-anarquismo é que ele reflete impensadamente esse momento histórico, em vez de fugir dele. Esquece-se, ou talvez não tenha conhecimento genuíno, do papel do Partido Trabalhista na nacionalização de grandes indústrias e serviços públicos ou na fundação do Serviço Nacional de Saúde. Os neo-anarquistas afirmam que “a política parlamentar nunca mudou nada” ou que o “Partido Trabalhista sempre foi inútil” enquanto participava de protestos sobre o NHS ou retuitava queixas sobre o desmantelamento do que resta do estado de bem-estar social. Há uma estranha regra implícita aqui: não há problema em protestar contra o que o parlamento fez, mas não é certo entrar no parlamento ou na mídia para tentar projetar mudanças a partir daí. A grande mídia deve ser desprezada, mas o BBC Question Time deve ser assistido e lamentado no Twitter. O purismo se transforma em fatalismo; é melhor não ser manchado pela corrupção do mainstream, é melhor “resistir” inutilmente do que correr o risco de sujar as mãos.

Não é surpreendente, então, que tantos neo-anarquistas pareçam deprimidos. Essa depressão é, sem dúvida, reforçada pelas ansiedades da vida de pós-graduação, uma vez que, como o Castelo do Vampiro, o neo-anarquismo tem seu lar natural nas universidades e é geralmente propagado por aqueles que estudam para obter as qualificações de pós-graduação ou por aqueles que se formaram recentemente em tais universidades.


O que fazer?


Por que essas duas configurações vieram à tona? A primeira razão é que elas foram autorizadas a prosperar pelo capital porque servem a seus interesses. O capital subjugou a classe operária organizada, decompondo a consciência de classe, subjugando cruelmente os sindicatos e seduzindo “famílias trabalhadoras” a se identificarem com seus próprios interesses estritamente definidos, em vez dos interesses da classe mais ampla; mas por que o capital se preocuparia com uma “esquerda” que substitui a política de classe por um individualismo moralizante e que, longe de criar solidariedade, espalha medo e insegurança?

A segunda razão é o que Jodi Dean chamou de “capitalismo comunicativo”. Poderia ter sido possível ignorar o Castelo do Vampiro e os neo-anarquistas, se não fosse o ciberespaço capitalista. A piedosa moralização do Castelo do Vampiro tem sido característica de uma certa “esquerda” por muitos anos — mas, se alguém não fosse membro dessa igreja em particular, seus sermões poderiam ser evitados. A mídia social significa que esse não é mais o caso, e há pouca proteção contra as patologias psíquicas propagadas por esses discursos.

E então? O que podemos fazer agora? Antes de tudo, é imperativo rejeitar o identitarismo e reconhecer que não há identidades, apenas desejos, interesses e identificações. Parte da importância do projeto dos Estudos Culturais Britânicos — como revelado de maneira tão poderosa e comovente na instalação de John Akomfrah, The Unfinished Conversation (atualmente na Tate Britain) e em seu filme The Stuart Hall Project — era resistir ao essencialismo identitário. Em vez de congelar as pessoas em cadeias de equivalências já existentes, o objetivo era tratar qualquer articulação como provisória e dotada de plasticidade. Novas articulações sempre podem ser criadas. Ninguém é essencialmente nada. Infelizmente, a ação correta sobre esse insight é mais eficaz do que a esquerda. A esquerda burguesa-identitária sabe como propagar a culpa e conduzir uma caça às bruxas, mas não sabe como se converter. Mas isso, afinal, não é o ponto. O objetivo não é popularizar uma posição de esquerda, ou conquistar as pessoas, mas permanecer numa posição de superioridade de elite, mas agora com a superioridade de classe redobrada também pela superioridade moral. “Como você ousa falar, somos nós que falamos por quem sofre!”

Mas a rejeição do identitarismo só pode ser alcançada pela reafirmação de classe. Uma esquerda que não tem classe em seu núcleo só pode ser um grupo de pressão liberal. A consciência de classe é sempre dupla: envolve um conhecimento simultâneo da maneira como a classe enquadra e molda toda a experiência e um conhecimento da posição específica que ocupamos na estrutura de classes. É preciso lembrar que o objetivo de nossa luta não é o reconhecimento da burguesia, nem mesmo a destruição da própria burguesia. É a estrutura de classes — uma estrutura que fere a todos, mesmo aqueles que lucram materialmente — que deve ser destruída. Os interesses da classe trabalhadora são os interesses de todos; os interesses da burguesia são os interesses do capital, que são os interesses de ninguém. Nossa luta deve ser pela construção de um mundo novo e surpreendente, não pela preservação de identidades moldadas e distorcidas pelo capital.

Se isso parece uma tarefa proibitiva e asustadora? É. Mas podemos agora começar a participar de muitas atividades prefigurativas. Na verdade, essas atividades iriam além da pré-figuração — elas poderiam iniciar um ciclo virtuoso, uma profecia auto-realizável na qual os modos burgueses de subjetividade são desmantelados e uma nova universalidade começaria a se construir. Precisamos aprender ou re-aprender como construir relações de camaradagem e solidariedade, em vez de fazer o trabalho próprio do capital condenando e abusando uns dos outros. Isso não significa, é claro, que devemos sempre concordar — pelo contrário, devemos criar condições em que as divergências possam ocorrer sem medo de exclusão e excomunhão.

Precisamos pensar muito estrategicamente sobre como usar as mídias sociais — sempre lembrando que, apesar do igualitarismo reivindicado para as mídias sociais pelos engenheiros libidinais do capital, este é atualmente um território inimigo, dedicado à reprodução do capital. Mas isso não significa que não podemos ocupar o terreno e começar a usá-lo com o objetivo de produzir consciência de classe. Precisamos sair do “debate” estabelecido pelo capitalismo comunicativo, no qual o capital está nos incitando incessantemente a participar, e lembrar que estamos envolvidos numa luta de classes. O objetivo não é “ser” um ativista, mas ajudar a classe trabalhadora a se ativar — e se transformar. Fora do Castelo do Vampiro, tudo é possível.



Notas de rodapé


  1. ones é um jornalista e comentarista político ligado ao Partido Trabalhista. Ele escreve usualmente no The Guardian [N.T.].
  2. O autor está se referindo a People’s Assembly Against Austerity, um fórum político onde são discutidas iniciativas voltadas aos segmentos da sociedade inglesa não priorizados pelas ações governamentais (os trabalhadores de baixa renda, os desempregados, os desabilitados, as mulheres e as minorias étnicas) [N.T.].
  3. Russell Brand é um conhecido ator e comediante inglês [N.T.].
  4. Paxman trabalha na BBC. É um jornalista e apresentador de televisão. Esta é, provavelmente, a entrevista a que Mark Fisher se refere: https://www.youtube.com/watch?v=3YR4CseY9pk. [N.T.].
  5. Trata-se da primeira aparição pública, em rede nacional de televisão, dos Sex Pistols. O que sucedeu foi uma troca de ofensas e palavrões entre a banda e o apresentador do programa, Bill Grundy. É um episódio marcante, tanto da história da televisão, quanto da história da relação entre mídia e música pop. Ocorreu em 1976. Ficou conhecido como “the Grundy incident” [N.T.].
  6. Mehdi Raza Hasan é um jornalista político inglês. Trabalha na rede Al Jazeera [N.T.].
  7. Uma artista plástica inglesa. Mantém um blog chamado Savage Messiah [N.T.].
  8. Refere-se ao ex-Primeiro Ministro Tony Blair.
  9. É uma pesquisadora norte-americana. Trabalha com teoria política [N.T.].
  10. É um teórico e artista inglês ligado, assim como Mark Fisher, ao CCRU (Cybernetic Culture Research Unit).